Crise: o que vem aí - Folha de São Paulo, 17 out 2008
WASHINGTON - Um dos mais experientes repórteres de uma grande agência de notícias em Washington saiu de um "pueblito" latino-americano miserável há décadas e fez a vida na América.
Encontrei-o no fim de semana com cara de enterro na sala de imprensa do FMI (Fundo Monetário Internacional). Seu fundo de aposentadoria derreteu. O dinheiro reservado para a universidade do filho também.
Como a maioria dos norte-americanos, a poupança da família estava na Bolsa. Só no último ano, a queda dos mercados subtraiu US$ 2 trilhões (quase dois PIBs brasileiros) dos fundos de aposentadoria. Tirou também muitos outros trilhões de quem simplesmente coloca sua poupança nesse tipo de aplicação.
Ao contrário da imagem que as Bolsas têm no Brasil, elas são "o" instrumento de poupança nos EUA. Todos põem dinheiro ali, não apenas os especuladores.
A situação de muitos norte-americanos hoje é a seguinte:
1) Estão significativamente mais pobres com a redução da poupança aplicada nos mercados. Um dos índices da Bolsa de Nova York, o Dow Jones, já caiu mais de 40% em um ano;
2) A dívida de seus financiamentos imobiliários ("mortgage") superou o valor de suas casas, que ainda tende a cair mais. Há mais de 10 milhões de famílias nessa situação;
3) Nunca as famílias estiveram tão endividadas. Seus débitos eqüivalem a 140% do PIB nacional. Coisa de US$ 19,6 trilhões. Essa explosão de endividamento ocorreu a partir da recessão de 2000, quando incentivos à concessão de créditos tiraram o país da crise;
4) Os bancos que financiam essas dívidas imobiliárias e que gerem os investimentos das famílias também estão muito endividados e em enormes dificuldades. Alguns já quebraram. O problema deles é que muitos emprestaram entre US$ 10 e US$ 35 para cada US$ 1 que tinham em patrimônio real.
Resumo: nunca as famílias e os bancos norte-americanos estiveram tão endividados. Pergunta: você emprestaria dinheiro a eles?
Isso leva à questão seguinte: quais as conseqüências da atual crise?
Se a situação das Bolsas é um desastre, é porque os investidores simplesmente esperam lucros igualmente desastrosos nas empresas. A razão dessa péssima expectativa está na lógica do encadeamento dos pontos acima.
Mais de dois terços do PIB norte-americano são gerados pelo consumo das famílias. E ele é movido a crédito. Se os bancos e as famílias estão endividados até as tampas, não haverá crédito disponível na praça (como já acontece). O próximo passo é o colapso do consumo. As vendas nos EUA já estão caindo e será a primeira vez em mais de 17 anos que o país passará por isso.
E, infelizmente, o problema não pára aí. Apenas começa.
Se as empresas venderem e lucrarem menos, vão cortar a produção e o emprego. Se mais norte-americanos já endividados ficarem desempregados, haverá um reforço negativo das condições já muito ruins expostas acima.
(Parêntesis: na Califórnia, onde a tal crise "subprime" começou antes, o nível de desemprego já bateu em 7,7%, bem acima dos 6,1% da média nacional. Isso antes das últimas turbulências).
O Tesouro dos EUA e o Fed (o banco central) sabem exatamente o rumo e proporções que a coisa está tomando. Daí o pânico e a promessa de trilhões para socorrer o mercado. Alguns mais pessimistas já falam no risco de uma "Grande Depressão". O próprio FMI diz que o mundo financeiro está "à beira de um abismo".
O problema (e ele não é pequeno) é que, para salvar a pátria, só restou aos EUA reforçar ainda mais a já pesada cadeia de endividamento norte-americana. Agora, será o próprio governo a se endividar barbaramente para tentar salvar seus também endividados bancos e consumidores.
Todos os bilhões e trilhões de dólares anunciados pelos EUA para socorrer os mercados nos últimos dias têm uma origem: o governo emite títulos do Tesouro e os vende no mercado em troca de uma remuneração _o juro. É assim que ele levanta as verdinhas.
O efeito colateral é que isso expande rapidamente a dívida pública e o déficit fiscal federal. A expectativa, antes mesmo do agravamento da crise, era de que esse déficit mais do que dobre dentro de dois ou três anos.
Os EUA ainda são o país mais rico do mundo e os mercados emergentes têm cerca de US$ 9 trilhões em reservas, 2/3 denominadas em dólares. Portanto, há dinheiro na praça para financiar o governo norte-americano nessa crise.
Mas cabe uma última pergunta: com consumidores, bancos e agora o governo tão endividados, você emprestaria dinheiro para os EUA? Qual a taxa de retorno (juro) que você cobraria para correr o risco? Se os EUA forem obrigado a subir o juro, o ciclo negativo de recessão só se agrava.
Uma indicação de que os EUA estão desesperados por dinheiro e financiamento foi que neste sábado (11.out), pela primeira vez em quase oito anos de governo, o presidente George W. Bush saiu da Casa Branca e veio para a sede do FMI, onde acontece sua reunião anual.
O motivo não poderia ser mais inusitado: pela primeira vez em sua vida, Bush foi à reunião do G20, grupo de países emergentes do qual o Brasil faz parte. Vários dos outros membros são os donos das reservas de US$ 9 trilhões que poderão, ou não, comprar títulos norte-americanos.
A crise é ainda bem mais grave do que parece.
| Fernando Canzian, 42, é repórter especial da Folha. Foi secretário de Redação, editor de Brasil e do Painel e correspondente em Washington e Nova York. Ganhou um Prêmio Esso em 2006.Escreve às segundas-feiras. |
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